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REPORTAGEM Uma Sapucaí de desafios (*) Barracão da Mangueira.
Laíla, diretor de carnaval da Beija-Flor de Nilópolis, caprichou na alegoria da descompostura. Do alto de seu um metro e setenta e mais um tiquinho, bem menor que a proeminência da barriga, botou medo em marmanjo capaz de empurrar sozinho um daqueles carros mastodônticos que atravessam a Avenida Marquês de Sapucaí salpicados de extremistas calipígeas. Com voz grave anunciou na noite de segunda-feira, a uma semana do desfile, que o ensaio da bateria da escola estava suspenso e chamou a comunidade na chincha. Atravessou o samba e com razão.
“É com um desfile como o que foi mostrado no ensaio técnico de ontem que vocês querem ganhar o tricampeonato?”, perguntou aos nilopolitanos que imaginavam se proteger da chuva na quadra da escola antes de se descobrirem encharcados por outros respingos. Já que ninguém ousou responder, tratou ele próprio de tocar o surdo. “Não vai dar. Foi um desastre, uma correria desenfreada. Os três inimigos, que todo mundo aqui sabe quem são, devem ter ficado felizes com o que viram.”
Os adversários da Beija-Flor na disputa pelo tricampeonato que a igualaria à Imperatriz Leopoldinense são a própria tricampeã do Carnaval Carioca, a Mangueira e a Viradouro. Há muita expectativa pelo desfile da Unidos da Tijuca. O carnavalesco Paulo Barros surpreendeu no ano passado, logo na estréia. Com um desfile inusitado, pelo qual os especialistas haviam passado batido, alçou ao vice-campeonato a agremiação condenada ao pelotão intermediário. Há ainda a força do samba do Salgueiro, a revolução da bateria da Mocidade Independente de Padre Miguel ao botar os chocalhos na frente da percussão, o desfile milionário da Mangueira.
Como se o fim da Era Joãosinho Trinta, internado num hospital vítima do terceiro Acidente Vascular Cerebral, não bastasse para um carnaval só. As discussões pré-carnavalescas estão reduzidas a duas – além de qual será a campeã. Uma é de quem vai ocupar o trono deixado vago pelo reinventor dos desfiles nos anos 70. A segunda insiste no repique temático dos trejeitos com que todas as escolas insistem em evoluir na avenida.
Há anos só se espera outra coisa: menos coreografia e mais samba. Os repórteres de televisão que cobrem o Sambódromo ao vivo se sentem como espécies ameaçadas. Depois das indefectíveis entrevistas inaudíveis, eles já estavam adaptados ao ecossistema que os mandava ordenar peremptórios: “Agora, mostra aí o samba no pé.” É ruim.
Academias de dança ou de samba
Ao contrário do que diz a marchinha, este ano vai ser exatamente igual àquele que passou – salvo as surpresas metereológicas de sempre e os segredos que serão desempacotados de hora em hora nas noites de domingo e segunda-feira. Das comissões de frente à ultima alegoria vai ser um teatro só, mas os restos de criatividade sempre foram suficientes para saciar a fome de folia da multidão que se espreme nas arquibancadas da Passarela do Samba.
A Viradouro, com o enredo “A Viradouro é só sorriso!”, repete a comissão de frente coreografada por Deborah Colker. A Mangueira, com seu quilométrico tema “Mangueira energiza a Avenida. Carnaval é pura energia e a energia é o nosso desafio”, mantém a aposta em Carlinhos de Jesus para abrir o desfile da escola. A Beija-Flor, com “Sete povos na fé e na dor... sete missões de amor”, não buscou nenhum coreógrafo de renome, mas também vai entrar na Sapucaí com o passo marcado. Cristo, jesuítas, índios, feiticeiros, ninguém escapa. Até os centuriões romanos, que sequer Nero saberia explicar como foram parar na catequese dos guaranis na região gaúcha das Missões, vão ser mais generosos em gestos do que em gingados. Suspeita-se que saibam bradar melhor uma espada – as da Beija-Flor são de plástico – do que dançar no sapatinho.
A Vila Isabel promete coreografia em todos os carros alegóricos. De quebra, uma encenação dramática na alegoria do Navio Negreiro para cantar “Singrando em mares bravios... Construindo o futuro”. A Portela, que entra na avenida como a preferida do presidente Lula por causa do tema “Nós podemos: oito idéias para mudar o mundo”, o que inclui um zero para a fome, terá cinco carros coreografados para dar “sustança” ao enredo de cunho social inspirado nas Metas do Milênio da ONU.
O grupo circense Intrépida Trupe é o abre-alas da Grande Rio. Um trigal humano vai sacudir ao vento na Porto da Pedra. Uma réplica da arquibancada da Sapucaí, em plena Sapucaí, promete ser a sensação da Caprichosos de Pilares. Uma plataforma de petróleo vai atrás do mesmo combustível que embala o enredo da Mangueira no mar de águas profundas, mas menos rico em reservas, da Vila Isabel.
O Carnaval Carioca é também um desfile de classes. A Mangueira vem regada por seis milhões de reais. Três milhões e meio saíram dos cofres da Petrobras, mais um milhão da Eletrobrás, outro naco do Banco do Brasil. Quem pensa que é a escola das estatais se engana em dobro. O Icatu Hartford, grupo privado de investimentos e previdência privada, também plantou erva no cofre da Mangueira.
É dinheiro suficiente para alçar a candidatura de Max Lopes à sucessão de Joãosinho Trinta. Autor do enredo feito sob medida para atrair o marketing da Petrobras, maior companhia de energia do país, o carnavalesco vai repetir a fórmula de fugir o possível e o impossível do verde-e-rosa. Em troca vai travestir a escola com seu estilo barroco futurista. Dispensam-se explicações.
A Mangueira já bombou. Só na bilheteria da quadra, com o ingresso a trinta paus, tirou mais de 150 mil reais a cada sábado. No último, antes de exibir aquela maravilha de cenário na Passarela do Samba, juntou cinco mil pessoas aditivadas pelo refrão “A energia do samba é combustível pro amor/ Sou Mangueira/ Nos braços do povo fazendo fluir/ A verde e rosa na Sapucaí.”
Elegâncias e paetês
A Portela cobrou dez reais por cabeça. Botou cinco mil pessoas para dentro, deixou outras tantas de fora, e ainda exibiu um reforço – esse sim com ginga, molejo e malícia, como se não bastassem os 260 mililitros de silicone em cada seio. Valéria Valenssa desceu do pedestal de globeleza para prestigiar com rara assiduidade os ensaios da bateria da qual é madrinha. Foi até Madureira num portentoso Toyota VX com direito a estacionamento dentro da quadra e à escolta de quatro seguranças. Paulinho da Viola, Dodô, primeira porta-bandeira campeã da escola, e Clovis Bornay vão abrir o desfile na Sapucaí.
A Portela só não está entre as favoritas porque teima na batida abafada da bateria, herança genética que mestre Marçal deixou ao filho Marçalzinho, e preferiu um samba menor de Noca. O compositor, integrante da Velha Guarda, foi bafejado pelos novos ventos que sopram por lá: saiu a turma de Carlinhos Maracanã, voltou a dos sucessores de Natalino José dos Nascimento, o Natal. Trocou bicheiro por bicheiro, mas oxigenou o ambiente. “Essa sim é a Portela”, dizia Dodô, entusiasmada com a quadra cheia na sexta-feira, 28.
A Portela também ganhou uma alavanca financeira estatal. Dinheiro da Caixa Econômica Federal para fazer um desfile estimado em uns quatro milhões de reais. A Viradouro sorri com outros quatro milhões. A Imperatriz Leopoldinense gastou algo parecido para apresentar na avenida o samba-enredo “Uma delirante confusão fabulística”, tema sob medida ao estilo rococó da carnavalesca Rosa Magalhães e às pretensões da escola de conquistar o tetracampeonato. A Beija-Flor ganhou uma mãozinha de última hora do governador Germano Rigotto: um milhão de reais que o governo gaúcho captou no Ministério do Turismo. O resto, o patrono Anísio Abrahão David bancou. É do jogo.
Da caixa-preta das escolas de samba sabe-se apenas o que é preciso e o que a prudência recomenda. O Carnaval Carioca deste ano desfila o luxo de dez milhões de reais só em patrocínio – tudo indica que subfaturados. É só fazer a conta. Além dos 4,5 milhões da Mangueira, a Grande Rio vai se lambuzar de Leite Moça para institucionalizar o enredo “Alimentar corpo e alma faz bem” com 2,5 milhões de reais da Nestlé. Com o 1,4 milhão que a TIM destinou à Mocidade Independente para que a escola de Padre Miguel exiba a cultura italiana em “Buon mangiare, Mocidade! A arte está na mesa”, se chega a 8,4 milhões de reais. Com mais um milhão da Beija-Flor a marca bate nos 9,4 milhões de reais. A Vila Isabel enfeita seu carnaval de 4,5 milhões de reais com um milhão da Transpetro e de um pool de estaleiros. Na ponta do lápis: 10,4 milhões de reais – sem falar nos caraminguás que pingaram na Tradição e em outras escolas menos favorecidas na folia financeira.
A Unidos da Tijuca tem pouco mais de dois milhões para dar asas à imaginação do carnavalesco Paulo Barros. Não é muito, nem é pouco – é o que a maioria diz que vai gastar. Nem o vice-campeonato do ano passado ajudou a escola a conseguir um patrocinador. Ainda assim, o carnavalesco sensação de 2004 promete repetir a dose. Paulo Barros radicalizou no ano passado com 127 figurantes para compor a alegoria do DNA. Este ano, só no abre-alas, serão cerca de 250 componentes. Um carro vai desfilar no mundo fulgurante da Sapucaí a timidez de materiais foscos. Trata-se de uma heresia para uma festa em que o brilho é tudo – e um pouco mais. Vai também dispensar o chassi para montar uma alegoria das grandes, sabe-se lá assentada no quê. Os ensaios estão sendo realizados em segredo em algum lugar perto do barracão, na zona portuária do Rio. Da cauda de um pavão escorregarão destaques. “Não posso revelar nada”, esconde Paulo Barros. “A gente sabe tudo”, rebate Mauro Quintaes, carnavalesco da Viradouro.
Ora, se não. A mão-de-obra que desenvolve a alegoria da Unidos da Tijuca é a mesma que faz o segundo turno num barracão qualquer e depois hora extra no Salgueiro. Só o que muda é o samba-enredo. De “Entrou por um lado, saiu pelo outro... Quem quiser que invente outro!” a “Do fogo que ilumina a vida, Salgueiro é chama que não se apaga” – que ameaça incendiar a avenida com o refrão “Hoje o fogo da alegria/ Se alastrou na Academia/ Por inteiro/ Vem no show da bateria/ Esse fogo que arrepia.../ É Salgueiro, Salgueiro, Salgueiro.” Ao menos na escassez de emprego, o samba já dançou.
(*) por Paulo Eduardo de Vasconcellos. AQUI
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