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REPORTAGEM Ressurreição no Araguaia (*)
A partir da esq.: Josian, ex-soldado que combateu os guerrilheiros, hoje integrante da comissão encarregada de levantar a memória do período, Miriam Alves, "Zezinho", "Jonas" e Valéria Costa, irmã de Valquíria, última guerrilheira morta no Araguaia
Desaparecido desde o final de 1974, o ex-guerrilheiro Josias Gonçalves de Sousa, o “Jonas”, está vivo e, 31 anos depois de terminada a Guerrilha do Araguaia, ainda leva uma vida semiclandestina nas matas da Amazônia. Ele reapareceu no final do ano passado a ativistas de esquerda que se encontravam em Xambioá, no Tocantins, e São Geraldo do Araguaia, no Pará, para criar na região um memorial em homenagem à guerrilha. Aos parceiros de antigos ideais deixou uma declaração em que conta sua história, desde que aderiu à guerrilha, em fevereiro de 1973, até ser preso, solto e perseguido por pistoleiros que eram, ao mesmo tempo, guias dos militares e caçadores de recompensa. O Exército o libertou clandestinamente da prisão, mas não retirou a recompensa que oferecia por sua captura.
Josias Gonçalves de Sousa é citado como “Jonas” em dois trechos do “Relatório Arroyo” – único documento oficial do PC do B sobre a Guerrilha do Araguaia, escrito por um dos principais dirigentes da guerrilha, Ângelo Arroyo, morto em 1976 em São Paulo por agentes da repressão no episódio que ficou conhecido como a Chacina da Lapa. Arroyo conta que “Jonas” foi recrutado entre “os elementos da massa”, dentro de um processo de cooptação de moradores da região que teria resultado na adesão de cerca de duas dezenas de camponeses à luta deflagrada pelo PC do B. A maioria está desaparecida.
Josias Gonçalves de Sousa estava até o final do ano passado na mesma lista em que figuram os guerrilheiros desaparecidos no site do partido (www.vermelho.org.br). Há poucos dias o nome dele foi retirado. Mas permanece na página da Internet da ex-guerrilheira Criméia Alice Schimit de Almeida. Ex-mulher de André Grabóis, um dos dirigentes da guerrilha, também desaparecido, ela deixou a região antes do início da luta porque estava grávida. Com "Jonas", a lista de desaparecidos do Araguaia tem 78 nomes - 58 guerrilheiros e 20 moradores da região.
A Guerrilha do Araguaia foi o mais arrojado foco de subversão organizado pela esquerda armada para enfrentar o regime militar. Começou a ser preparada no final de 1966 por ativistas que fizeram curso de guerrilha na China e durou até o início de 1975. A fase de combates abertos teve início oficialmente em 12 de abril de 1972, de acordo com o “Relatório Arroyo” e documentos militares do período.
Durante cerca de cinco anos, 69 ativistas – entre dirigentes do PC do B e estudantes recrutados nas universidades, especialmente depois da prisão dos participantes do Congresso da UNE de Ibiúna, em São Paulo – se misturaram entre os camponeses para organizar a luta armada que pretendia derrubar o regime com uma revolução de origem rural.
Ao se apresentar ao grupo de ativistas que pretendem erguer o memorial da guerrilha, “Jonas” foi reconhecido por Micheas Gomes de Almeida, o “Zezinho do Araguaia”, que integrava o comando militar do PC do B e que se pensava, até agora, ser o único sobrevivente do movimento. “Zezinho” afirma que se encontrou com o então companheiro de lutas na mata em várias ocasiões entre o início e o final de 1973.
Testemunha perigosa
O relato de “Jonas” chegou a “Zezinho” com duas recomendações: que sua história seja encaminhada à Comissão de Anistia do Ministério da Justiça com um pedido de indenização e outro para que o governo lhe dê garantias de vida. Explica-se o temor: ele seria testemunha de supostos crimes cometidos por militares. Como ficou cerca de um ano preso na base do Exército em Xambioá, conviveu com outros guerrilheiros que, depois de presos, teriam sido retirados da cadeia e desapareceram. Também teria testemunhado execuções em escaramuças na mata durante o conflito armado.
Um dos guerrilheiros que “Jonas” relata ter visto na prisão e que desapareceu depois de retirado da base de Xambioá de helicóptero pelos militares é Tobias Pereira Júnior, ex-estudante de medicina da Universidade Federal Fluminense, que militava com o codinome de “Josias”. Foi a coincidência entre o nome de guerra de um e o verdadeiro de outro que levou os dirigentes do PC do B a rebatizar Josias com o codinome “Jonas”. Os dois pertenciam ao mesmo grupo.
Na prisão, Tobias viria a livrar “Jonas” da morte ao prestar um depoimento em que garantia aos militares que o lavrador, na época com 18 anos, se incorporou às Forças Guerrilheiras (Foguera) porque não lhe restou outra opção depois que sua família fora presa, mas que não teria tido participação em nenhum confronto. A versão coincidia com depoimento de “Jonas”. A bem da verdade, ele aceitou o convite e combateu na guerrilha como quadro militar. Na lista do PC do B é tratado como guerrilheiro e não como morador.
“Jonas” conta ter convivido na base militar de Xambioá com outros dois guerrilheiros que estão desaparecidos. Um deles foi Cilon da Cunha Brum, conhecido por “Comprido” ou “Simão”, natural de São Sepé, no Rio Grande do Sul, ex-estudante de economia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, preso e desaparecido desde o Natal de 1973. Suely Yumiko Kamaiama, a “Chica”, paulista de Coronel Macedo, ex-estudante de Licenciatura em Língua Portuguesa e Germânica da Universidade de São Paulo, também faz parte das memórias de “Jonas”.
A versão dele, de que teria visto “Chica” na prisão, contraria outros relatos. No livro “Dos filhos deste solo”, de autoria do secretário nacional de Direitos Humanos, Nilmário Miranda, e do jornalista Carlos Tibúrcio, consta que ela foi cercada por uma tropa militar no início de 1974 e metralhada por resistir à rendição. Seu corpo teria sido perfurado por cerca de 100 tiros. A conclusão foi retirada de um relatório do Exército. “Josias garante que ‘Chica’ esteve presa na base militar de Xambioá”, diz a jornalista Myrian Alves, filiada ao PT, pesquisadora da Guerrilha do Araguaia e que também faz parte da comissão que organiza o memorial.
Emboscada e barbárie
Recrutado pela geóloga Dinalva Conceição Teixeira, a “Dina”, e Osvaldo Orlando da Costa, o “Osvaldão”, que ao lado do médico gaúcho João Carlos Haas Sobrinho, o “Juca”, se tornaram lendas no Araguaia, “Jonas” teria permanecido nove meses na guerrilha e só se rendeu no final de 1973 para ser trocado pelo pai, José Gonçalves, preso e torturado porque o filho havia aderido à subversão. No período em que atuou na guerrilha participou de confrontos com os militares. Na declaração que será encaminhada à Comissão de Anistia são citados dois episódios: o ataque a um pelotão do Exército na localidade chamada Imbaubal e a emboscada na região da Gameleira, em 24 de novembro de 1973, em que “cairia” junto com outros dois guerrilheiros.
Surpreendidos por três guias das Forças Armadas – Ioma, Baixinho e Cinézio – “Jonas”, o cearense Antônio Teodoro de Castro, o “Raul”, ex-estudante de farmácia e bioquímica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, desaparecido desde 24 de dezembro de 1973, e o capixaba Arildo Valdão, o “Ari”, estudante do Instituto de Física da UFRJ, foram emboscados numa grota enquanto abriam uma picada a facão. O primeiro a ser atingido foi “Ari”, que levou um tiro no tórax e morreu. “Raul” correu e foi atingido por um tiro nas costas. “Jonas” conta que com o impacto do tiro “Raul” caiu, rolou para a parte baixa do terreno e em seguida levantou, desaparecendo na mata. “Jonas” ficaria sabendo depois que a bala teria acertado um prato de esmalte que o guerrilheiro carregava na mochila presa às costas.
Encurralado, mas escondido, ele diz que teria assistido os guias cortarem a cabeça de “Ari” para levá-la à base militar – um procedimento comum entre militares e mateiros que caçavam os guerrilheiros. Os corpos eram abandonados no local, enterrados ou não, e a cabeça era levada para identificação. “Diante dos meus olhos, decapitaram o ‘Ari’. Amarraram pés e mãos e penduraram num vara-pau. Saíram dizendo que queriam a minha cabeça, que na época já valia CR$ 5.000,00”, relata “Jonas”. A descrição do ex-guerrilheiro coincide, em parte, com o capítulo do “Relatório Arroyo” que descreve a decapitação de “Ari”.
“No dia 24 (novembro de 1973), quando voltavam de um contato com a massa, os companheiros ‘Ari’, ‘Raul’ e ‘Jonas’ pararam próximo a uma grota. ‘Ari’ e ‘Raul’ se aproximaram das mochilas. Ouviu-se um tiro e ‘Ari’ caiu. Em seguida ouviram-se mais dois tiros. ‘Raul’ correu. O comando do Destacamento BC, que também ouvira os tiros, enviou quatro companheiros para averiguar o que aconteceu. Esses companheiros encontraram o corpo de ‘Ari’ sem a cabeça. Sua arma, rifle 44, seu bornal e sua bússola tinham sido levados. As mochilas de ‘Ari’, ‘Jonas’ e ‘Raul’ estavam lá. ‘Raul’ voltou pela manhã ao acampamento e ‘Jonas’ desapareceu”, escreveu Ângelo Arroyo.
No mesmo trecho fica no ar uma dúvida que só agora se desfaz com o depoimento de “Zezinho do Araguaia”: o ex-dirigente guerrilheiro escreve no relatório que “houve suspeitas de que o assassino de ‘Ari’ fosse Jonas’.” “Zezinho”, que acompanhou todas as fases da guerrilha e estava sempre ao lado de Arroyo – foi ele quem retirou o dirigente da mata, até entregá-lo ao comando do PC do B em São Paulo, em 1975 – garante que a suspeita levantada foi um lamentável equívoco.
Prisioneiro do passado
“Conheci o ‘Jonas’. A suspeita não tem fundamento. Houve uma falha de Arroyo por não ter concluído o relato sobre o episódio. Depois do tiroteio, ‘Raul’ e ‘Jonas’ correram para lados diferentes, tentando sobreviver”, afirma “Zezinho”, que hoje ainda busca informações para elucidar as questões relacionadas à Guerrilha do Araguaia. “Raul” retornaria ao acampamento no dia seguinte, enquanto “Jonas” teria se perdido na floresta. O sumiço de “Jonas” e a suspeita de que teria eliminado um companheiro, de acordo com a narrativa de Arroyo, levaram o comando militar a desmontar o acampamento, apagar as pistas e se estabelecer com os sobreviventes numa outra região, conhecida por Palestina. Na época ainda restavam 32 guerrilheiros.
“Jonas”, que admite nunca ter entendido direito a causa pela qual lutou, dá sua versão para o que aconteceu: “Depois daquele dia desmembrei-me completamente do bando, já que via meus companheiros sendo exterminados um a um. Por causa daquelas cenas que presenciei, sozinho no mato, passei sessenta dias perdido e enlouquecido sem saber o caminho de casa e como encontrar o bando que esperava o nosso retorno com o mantimento. Após ter voltado ao meu estado normal, sobrevivendo unicamente de frutas e jabutis, todo maltrapilho, barbudo, consegui sair no igarapé Pau Preto, que banhava as terras do meu pai, onde fiquei sabendo por minha madrasta e minha irmã, Celina, tudo o que tinha acontecido com ele. Vendo os seus sofrimentos, a pobreza que estavam, resolvi me entregar, já que não encontrava outra solução”, conta.
“Jonas” procurou um vizinho, Constâncio, e os dois seguiram para a base militar de Xambioá. O ex-guerrilheiro diz que foi recebido “cordialmente” e logo seu pai, José Gonçalves, foi solto. Depois de alguns dias de prisão, com o depoimento “salvador” prestado por Tobias, passou a trabalhar na cozinha e em serviços gerais na base militar, mas nunca pode receber a visita de parentes. No final de 1974, em data que diz não lembrar, foi liberado e voltou para casa. Ainda encontrou o pai vivo, mas muito doente e fraco por causa da tortura que havia sofrido. “Ele jamais se recuperou”, escreveu no relato que será entregue à Secretaria de Direitos Humanos. Traumatizado e com seqüelas, morreu em 1982. As lavouras de subsistência haviam sido destruídas e a família vivia na miséria.
Fustigado pelos caçadores de recompensa, “Jonas” conta que se viu obrigado a deixar a casa da família, em São Geraldo do Araguaia. “Mesmo me dando a liberdade, fizeram essa covardia comigo e não retiraram a recompensa.” Só retornou à casa da família dezessete anos depois, mas ficou apenas oito dias no convívio com os irmãos. O medo de represálias o levou de volta à clandestinidade, perambulando de fazenda em fazenda. Só no ano passado, protegido por amigos, voltou a São Geraldo para contar a sua versão aos ativistas que hoje cuidam de resgatar a história da Guerrilha do Araguaia. Embora tenha pedido que sua história seja encaminhada ao Ministério da Justiça, circula com discrição.
“Ele ainda tem muito medo. Fala que até hoje é perseguido”, diz Celina Gonçalves de Sousa, prima e irmã de criação. No relato dela, Josias, que tem dez filhos, é um homem que vive torturado pelo medo: chegou a mudar de nome, troca freqüentemente de endereço e sempre aparece sem avisar. O encontro mais recente entre os dois foi em 10 janeiro, em São Geraldo do Araguaia. “Jonas” esperava se encontrar também naquele dia com “Zezinho”, mas, como o ex-companheiro de luta armada não pôde viajar, retornou no dia seguinte para casa, numa área rural do município de Novo Repartimento, no Pará. “Zezinho” diz que vai encaminhar o caso à Comissão de Anistia nos próximos dias, com um pedido de inclusão do nome de Josias no programa de proteção a testemunhas.
(*) por Vanconcelo Quadros. AQUI
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