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CRISE NA RORAIMA A imprensa, os índios e os brancos (*)
Os atritos envolvendo populações indígenas e proprietários rurais, no Mato Grosso do Sul e em Roraima, têm raízes tão antigas quanto a formação do Brasil, embora muitos queiram enxergar no conflito interesses localizados.
A mídia, quase sempre distanciada desses temas, a não ser quando é provocada por manifestações de descontentamento, contribui com sua cota involuntária de exotismo.
Urucum, semente fartamente utilizada por povos indígenas como fonte de tintura vermelho-sangue, pode ser chamada de "árvore", quando o urucuzeiro, a planta que produz o urucum não passa de um arbusto.
Pequenas peças de bambu, galhos improvisados para uma manifestação se transformam em "bordunas".
Borduna é um instrumento sólido e pesado, em madeira densa, usado para defesa e ataque, normalmente por povos que não fazem uso de arco e flecha.
E, claro, sempre alguns repórteres ficam "retidos" e "ameaçados".
Ao longo de uma história em que sempre levaram a pior, as populações indígenas aprenderam espertamente a conviver com a mídia. E fazem suas cenas. É parte de uma estratégia antiga. Nem sempre são compreendidos nesse ritual que objetiva uma estudada intimidação.
Os jornais, especialmente, não têm, neste momentos, repórteres capazes de trazer para a redação trabalhos mais profundos, capazes de dar inteligibilidade possível a esses acontecimentos. Não porque não existem talentos capazes disso. As redações é que não estão interessadas.
As redações querem histórias curtas e objetivas, com começo, meio e fim. E quanto mais fútil, melhor. É como se houvesse desinteresse ou ceticismo quanto à inteligibilidade. Como se fosse uma descortesia convidar o leitor a refletir. Parte-se do pressuposto de que todos têm muita pressa e não sobra tempo para pensar.
Essa profunda alienação contemporânea tocou fundo homens como Nietzche e Ortega y Gasset, entre muitos outros, e os prognósticos que eles fazem disso não são nada animadores. Não há chance alguma numa vida alienada.
Fazendas enormes
Com freqüência se lê ou se ouve de representantes de agropecuaristas vizinhos de populações indígenas que esses povos têm terras em excesso.
Comparada a uma propriedade rural tecnificada, com tratores, pesticidas, sementes melhoradas ou rebanhos promissores, as terras indígenas podem parecer excessivas.
Mas índios não são fazendeiros convencionais.
A terra é a fonte de onde retiram seus sustentos, em caça, pesca, coleta ou plantio de frutos e outros alimentos básicos, como a mandioca e o milho. Mas a terra se confunde com eles. Não é um bem no sentido monetário, ou de prestígio social, como acontece na sociedade exterior.
Os índios são parte da terra e, confinados como um fazendeiro deixam de ser índios sem chegarem a ser "brancos". Sem a terra eles não podem existir.
Da forma tradicional como vivem, os povos indígenas necessitam de grandes áreas. Muitos deles são nômades e as longas caminhadas que fazem, alterando terras baixas e altas, dependendo de secas ou chuvosas, são, de alguma forma, o motivo de estarem no mundo.
O que estamos fazendo no mundo?
Faça uma pergunta como essa a um fazendeiro "branco" e raramente você ouvirá uma resposta comovente. Não porque os fazendeiros sejam necessariamente estúpidos. Mas porque eles pensam em termos monetários. Só assim podem ser fazendeiros.
Índios e fazendeiros são espécies que não se confundem. Isso é o que quero dizer. Por isso não podem ser comparados. Não há sentido em se tentar comparar fatos incomparáveis.
No Mato Grosso do Sul, índios de várias etnias invadiram fazendas no município de Japorã e proximidades, argumentando que estavam apenas retornando aos seus antigos territórios. Estão corretos. Mas terão que negociar essa posição com os fazendeiros locais que, na verdade, podem ser empresas com nenhum vínculo com a terra.
Multinacionais, como fabricantes de automóveis, são proprietárias de enormes fazendas no Brasil.
Claro que isso não é contra a lei. Mas a lei, muitas vezes, é apenas um escudo. Um disfarce para explorações nada legais, como sugere a Operação Anaconda, que, neste momento, levanta dos podres de meritíssimos representantes da lei.
Não é ilegal, mas é imoral. E contra isso podem se bater todos os advogados com suas falas eloqüentes e cheias de parábolas.
Como crianças
Boa parte das terras hoje regularizadas, em estados de ocupação recente, como o Mato Grosso do Sul, subdivisão do antigo Mato Grosso, foram obtidas no boca do fuzil. Ou pela negociata, favorecimento e pura corrupção. Por isso o argumento de que são portadores de escrituras não deveria bastar para assegurar a pretensão de muitos proprietários. Especialmente se estiverem respondendo aos índios, proprietários históricos de todas essas terras do Brasil.
Alguém, mais cínico, pode argumentar que um raciocínio desse faria com que devolvêssemos todas as terras aos índios e voltássemos de carona para as terras de onde vieram nossos próprios ancestrais.
Claro que é puro cinismo. Pode ser até divertido. Mas, por muitas e diferentes razões, é inteiramente inconsistente.
A população indígena brasileira hoje não passa de 325 mil indivíduos. Mas já foi muito menor em meados do século passado.
Há quem sustente que à época da chegada de Cabral e seus homens o Brasil tinha uma população de 5 milhões. Há muitos caminhos, da lingüística à pesquisa arqueológica, além de outras referências históricas, para se aceitar um número desse porte.
Eliminamos boa parte por "espingardeamento", para usar uma expressão corrente em Darcy Ribeiro. Fizemos desaparecer um outro tanto por transmissão intencional de doenças como a varíola. Transmitimos enfermidades ingênuas aos nossos olhos e letais para os organismos desses povos, como a gripe.
Escravizamos em nome de Deus e exigimos que eles se cobrissem, abandonassem as habitações coletivas e consumissem açúcar e café. Depois tentamos voltar atrás e rimos deles pelo apego ao café, ao açúcar e por gostarem de balas de caramelo. Dissemos a eles, como dizemos às crianças, que as balas estragam os dentes e são prejudiciais à saúde.
Na verdade, não sabemos quase nada dos nossos índios. Por isso os repórteres se referem a um pedaço de bambu, um galho improvisado para uma demonstração, como "borduna", quando borduna, de fato, é uma outra coisa.
Terra sem lei
Os índios muitas vezes se divertem com isso. E muitas vezes choram por essa nossa incompreensão. Já vi líderes indígenas respeitados levarem seus jovens às lágrimas pelo relato do que viram no passado. De bom e ruim.
Vi Prepori, líder dos Caiabi, no Xingu, sonhar com olhos abertos com as terras que não existem mais em localidades como Alta Floresta, no Mato Grosso, uma das muitas cidades que nasceu do garimpo e depois trocou o ouro esgotado pela pata do boi.
Ouvi Aritana, dos Yalapiti, expressar o temor de que os jovens se enfeiticem com o mundo dos brancos e desistam de ser índios.
Já escutei Davi Kopenawa, na Ianomâmi, falar de seus mitos incompreendidos enquanto deslizávamos por uma estrada lamacenta cortando a selva como uma serpente comprida, entre o Brasil e a Venezuela.
Em nenhuma dessas vezes me orgulhei de ser um "branco".
Também já estive na bela reserva de Raposa Serra do Sol, que o ministro Thomaz Bastos promete homologar ainda este mês. Posso dizer o óbvio: a situação é complicada nessas regiões de fronteira da ocupação, como é o caso de Roraima.
A sede da localidade de Uiramutã, por exemplo, foi provocadoramente plantada no meio de uma aldeia indígena. Os índios reclamaram, inclusive com hostilidades, mas isso não bastou.
Os jornais dizem que as populações indígenas estão divididas em Raposa Serra do Sol quanto à demarcação contínua (incluindo fazendas e povoados) e não contínuas (recortando essas ocupações).
Por tudo que vi, sei que essa "resistência" passa pela manipulação de proprietários agrícolas, os mesmos que fizeram os postos de combustíveis de Boa Vista suspenderem as atividades. Os mesmos que paralisaram as estradas por dois dias inteiros. Os mesmos que estão habituados a ditar a lei que lhes convém, em nome do mercado, da modernidade e uma série de outros motivos que, no fundo, só interessam a eles próprios.
E em Roraima não estamos falando de "índio bom" e "branco malvado". Estamos falando de terras sem lei. Lei no sentido de expressão de um contrato social que assegure o bem-estar comum. Ao menos desde que, no século 16, o papa reafirmou, em Roma, que "índios também são humanos".
(*) por Ulisses Capozzoli. AQUI
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