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REPORTAGEM Elas exigem respeito (*) “Meu nome é Vânia, moro no Recife - e sou puta”, apresentou-se uma mulata, usando óculos e chapéu de crochê preto. O termômetro beirava os 40 graus na tarde do último sábado na capital gaúcha, quando Vânia, Ivanilda, Tina, Gabriela e Maria Eugênia entraram numa tenda do Fórum Social Mundial para participar do debate: “Construindo a Cidadania: a experiência da rede brasileira de Profissionais do Sexo”. Nem a presença, numa sala ao lado, do escritor português José Saramago, prêmio Nobel de Literatura, afetou o número de interessados em ouvir o quinteto feminino. O público tomou todas as cadeiras, deixando os atrasados em pé, para assistir à conversa das cinco mulheres, líderes que atuam, respectivamente, em Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo e Córdoba, na Argentina. Bem articuladas, elas promoveram um evento que, ao contrário de Lula, só arrancou aplausos, de médicos, feministas, estudantes, cegos, travestis e, claro, colegas de profissão. Profissional há 32 anos – começou aos 20 - Vânia (que, segundo uma colega, é chamada assim como “nome de guerra”) pertence à Associação Pernambucana das Prostitutas. Ela e suas colegas lutam por respeito, saúde e fazem questão de mostrar à sociedade que elas, sim, fazem sexo seguro. "Não queremos brigar. Inclusive, já conseguimos ser respeitadas”, diz Vania, que promove oficinas e palestras na rede estadual de saúde e já se reuniu com mais de 200 delegados do estado. “Vocês sabem como é, os delegados nordestinos são muito machistas, mas a delegada da Delegacia de Mulheres nos abriu esta oportunidade - e a situação já melhorou bastante”, alegra-se. “Faço zona no local há 32 anos e o pessoal sempre passava com a maior cara feia. Hoje, muitos dão boa noite e já perguntam 'como vai, madame? Como foi o seu dia?' É o exemplo de como o sistema de sensibilização resolve problemas de relacionamento.” Teoria e prática do sociólogo A política de sensibilização já foi também usada, com bons resultados, em contatos com lojistas e guardas municipais do Recife, mas o maior orgulho de Vânia é ter sido capa do jornal mensal “Beijo da Rua”, editado no Rio de Janeiro. “Antigamente, prostitutas só chegavam às páginas dos jornais quando estavam envolvidas em crimes – hoje, temos o nosso meio de comunicação.” Mas o estigma em relação às prostitutas ainda preocupa estudiosos como o sociólogo da Universidade Federal da Bahia, professor Gey Espinheiras, autor de vários livros sobre o assunto, que estudou a prostituição em Salvador na década de 80. Ele ainda lembra, indignado, que a polícia baiana chegou a desencadear uma chamada Operação Inseticida para limpar as ruas de Salvador com a prisão, muitas vezes violenta, das prostitutas. “Temos de descobrir de onde vem o estigma em relação às prostitutas para depois bolar estratégias eficazes que dêem o reconhecimento da sociedade a esta profissão tão antiga quanto a de sacerdotes e magos”, prega o professor. E confessa conhecimento prático da questão: “Sempre freqüentei bordéis.” O professor Espinheira lembra que, até o século 20, as mulheres ficaram restritas à vida familiar, reservadas apenas à procriação. “Esta superioridade natural da mulher em parir fez dela a escrava da sociedade, uma mercadoria, uma prisioneira”, diz. “Mulheres e escravos não participavam da vida política e dos negócios da sociedade. Por quase dois mil anos, acreditava-se que o cérebro da mulher era menor que o do homem, e que elas eram serem inferiores”. Segundo ele, as prostitutas eram uma forma de resistência a isso. São mulheres que saíram do espaço limitado da casa e ganharam o espaço público da rua. “Os homens que usufruíam destas mulheres se sentiam ameaçados por aquelas criaturas estranhas, que transgrediam física e socialmente os limites da mulher”, ensina. E garante: “Eis a razão do estigma.” Espinheira surpreendeu parte da audiência do Fórum Social Mundial ao declarar: “Nenhuma outra profissão pode ser mais digna, carinhosa e terna como esta, que nos acolhe.” As observações práticas e teóricas do professor baiano o levam a acreditar que “as mulheres da vida tratam e curam as impurezas da alma e a solidão dos viajantes, dos estranhos – e dos homens casados”. Diante do espanto de parte da platéia, justifica: “Prostitutas sempre foram terapeutas, psicólogas. Esta deve ser a profissão mais valorizada – sobretudo neste mundo do desencontro e do efêmero.” Filosofia na zona Do outro lado do balcão, a paulista Gabriela, da Rede Brasileira das Profissionais do Sexo, mostra que o professor tem, pelo menos, alguma razão no que diz: “Amo os homens. Eles são de uma fragilidade incrível. Quando chegam a uma área de prostituição, querem conversa, precisam de carinho. Para nós, eles sempre foram isso.” E há reciprocidade na relação, segundo ela: “Não sofremos preconceitos dos nossos clientes. Sofremos abusos da polícia, dos cafetões, das cafetinas, mas nunca daquele homem solitário que nos procura. Quando ele chega tirando sarro da nossa cara, é sinal de insegurança.” Gabriela conta que, certa vez, fez uma operação e ficou muito tempo sem trabalhar. Diariamente, ia à zona de prostituição e ficava no canto, lendo seus livros. Seus antigos clientes chegavam, pediam desculpas ao lhe comunicar que iriam fazer programas com outras colegas e lhe davam algum dinheirinho para que sua noite não fosse de todo perdida. “Fiz grandes amigos e bati altos papos filosóficos na zona”, conta. Politizada, Gabriela relembra que em alguns estados do Brasil, até a década de 70, prostitutas tinham de andar com carteirinhas para poder trabalhar e eram obrigadas a fazer exames de saúde mensalmente. “Depois de muitos debates e desacordos ao longo das últimas décadas, só agora a nossa classe está começando a dialogar, a ser ouvida e a colher resultados. Estamos muito felizes com isso”, festeja. Quando a questão da Aids é levantada, Gabriela defende o direito de as mulheres serem examinadas por ginecologistas sem ter de ouvir deles precisam mudar de profissão. “Eles não têm direito de dizer a ninguém a profissão que se deve exercer”, afirma. Ao seu lado, Vania diz: “Estamos conscientes de que a Aids não é uma doença de prostitutas - é uma doença de quem transa sem camisinha. Aprendemos a colocá-la com a boca ou com a mão, mas, no Nordeste, por causa da pobreza, muitas meninas não conseguem recusar um programa depois de 12 horas sem ter descolado nada. Se um homem oferece 100, 200 reais para transar sem camisinhas, é difícil de recusar se a auto-estima dela estiver baixa. Nossas oficinas levantam sua auto-estima e lhes ensinam tudo sobre a camisinha.” Vania ainda faz questão de lembrar: “Puta não usa droga injetada. Nós amamos o nosso corpo, precisamos dele para trabalhar. Puta só fuma maconha ou toma uma cerveja, uma cachaça. Se a gente ficar bêbada na zona, amanhã não terá dinheiro nenhum.” Gabriela também reconhece que a questão econômica é a maior causa da prostituição, mas faz questão de lembrar que as dificuldades não são exclusivas das prostitutas. “Na noite de Natal, fui ao supermercado e a mocinha do caixa me disse que ficaria trabalhando até duas da manhã. Ela estava lá desde o começo do dia – e para ganhar quanto?” – pergunta, indignada. “Não somos só nós que trabalhamos na madrugada. Olhem para moças como essa, para os garçons e enfermeiros. Quanto eles ganham para virar a noite?” Uma senhora conservadora É claro que, para as prostitutas, a carga de trabalho pesa por mais tempo, no entanto. Sem data marcada para aposentadoria, algumas têm de ouvir, com bom humor, que são quase tão antigas quanto a profissão. É o caso de Ivanilda Santos de Lima, da Associação Fio da Alma, entidade que atua em 15 áreas do Rio de Janeiro e da Baixada Fluminense. Ivanilda, carioca de 65 anos, cinco filhas, um marido e mais de cem quilos de peso, apresentou-se assim à platéia do Fórum em Porto Alegre: "Boa tarde, desculpe o atraso - mas prostituta não se atrasa, tem apenas outro compromisso." E emendou: "Sou prostituta há 50 anos, ou seja, não existe ex-prostituta, muito menos velha; é o sapato velhinho que fica bom no pé." Ivanilda conta que lhe faltava auto-estima durante os longos anos de carreira, mas, inspirada no exemplo da paulista Gabriela e incentivada pelo próprio marido, ganhou ânimo para criar a Associação Fio da Alma e, hoje, vê com felicidade que as profissionais afiliadas dispõem de uma casa onde podem tomar banho, descansar e até assistir a vídeos. “Temos um projeto de prevenção de saúde, projetos ligados à cidadania e estímulo às profissionais”, diz. Faz questão de ressalvar: “Ainda as chamo de profissionais, mas a palavra é prostituta mesmo.” A ONG criada por Ivanilda também se preocupa no Rio com as questões que afligem o professor Espinheira em Salvador. “Proporcionamos auto-estima a estas moças, ajudamos a providenciar documentação e lhes ensinamos a dizer não aos policiais que as abordam. Elas têm de dizer a eles que prostituição não é crime”. Segundo Ivanilda, crime é ter uma mulher em casa, levantar a mão para ela, explorá-la ou tirar seu dinheiro. “Mas, se você tem em casa uma mulher que está batalhando o próprio dinheiro, isso não é crime.” Como todas as colegas que foram a Porto Alegre, Ivanilda ressalta que é contra a prostituição infantil e adolescente, com um argumento tocante: “Também somos mães, temos sonhos. Muitos sonhos.”. Ela se confessa uma mulher extremamente conservadora, que deseja que as filhas se casem virgens - das cinco, duas são casadas e as três solteiras estão na escola. “Só faço festa de quinze anos para as virgens”, avisa. “Agora, se a minha filha chegar aos 20 anos e disser que quer ser prostituta, vou adorar, mas vou dizer a ela quais são as barreiras da profissão”. E não são poucas as barreiras. Ela conta que a sociedade as rotula de ladras, de traficantes de drogas, de traficantes de adolescentes ou de vagabundas. “Nos rotulam de tudo. E sabem por que? Porque somos mulheres alegres, somos flores que falam. E onde há alegria, há movimento. E onde há movimento, as pessoas chegam para ganhar dinheiro”, diz ela. “Não somos donas do mundo para expulsar ninguém ou para mandar vender cocaína em outro canto”, argumenta. “Mas podemos dizer às menores: Olha, querida, aqui você não pode ficar”. Ivanilda conta que, às vezes, as próprias prostitutas dão dinheiro a essas menores para que elas não tenham de fazer programa. Bem diferente é o próprio caso: "Ficar três dias sem ganhar nada não dá - por isso que eu ainda não parei. Perguntam-me com eu ainda trabalho aos 65 anos, mas meus clientes envelheceram junto comigo. Se velhice fosse problema, eles teriam de permanecer jovens para sair com as novinhas." Ivanilda tem fãs também fora da zona. “Essa mulher é demais, vim aqui só para ouvi-la falar” – diz, entusiasmado, o motorista Gaudêncio, que levou, de ônibus, 15 prostitutas cariocas a Porto Alegre para o Fórum Social Mundial. “Foram 21 horas de viagem – Ivanilda veio conversando comigo durante todo o tempo”, conta ele, antes de pegar o trajeto de volta ao Rio. Enquanto Gaudêncio mostra sua admiração por ela nos bastidores, Ivanilda resume, no debate, o sentimento de todas elas: “A sociedade finge que não fazemos parte dela, mas isso é um engano. Somos eleitoras, pagamos impostos, compramos no mercado. Não estamos pedindo para ninguém fazer o que a gente faz. Apenas pedimos que nos respeitem como mulheres, como cidadãs e como pessoas.” (*) por Tania Menai. AQUI
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