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O próximo papa
26.02.2005 | Com as crises de saúde cada vez mais freqüentes – e mais graves – do papa João Paulo II, voltam à baila discussões a respeito de seu sucessor. A dúvida é se virá mais um conservador ou se, desta vez, haverá como líder da Igreja Católica versão romana alguém liberal. Por liberal, entenda-se mais inclinado à aceitação de homossexuais, talvez de abortos, no mínimo tolerante com o uso de contraceptivos.
O argumento liberal é que o ultraconservadorismo de Karol Wojtilla está alienando católicos romanos em todo o mundo, afastando famílias da Igreja. É bem provável que estejam certos. Mas uma olhada para o lado, para a crise da Igreja Anglicana, pode indicar o tipo de abalo sísmico que aguarda a Igreja de Roma quando finalmente vier um papa disposto a encarar o mundo atual.
Em finais de 2003, a Igreja Anglicana dos EUA – lá chamada Igreja Episcopal – consagrou Gene Robinson bispo de New Hampshire. Pai de duas filhas, avô de uma neta, desde 1989 Robinson vive com Mark Andrews, seu parceiro. Passou por psicoterapia para livrar-se do homossexualismo, permanece amigo da ex-mulher, é militante da causa gay. E é bispo. Desde sua nomeação, com muita cautela, tanto a Igreja Episcopal como a Igreja Anglicana do Canadá vêm realizando casamentos entre parceiros do mesmo sexo.
Embora a Igreja Anglicana tenha, no Arcebispo de Canterbury, uma espécie de patriarca no modelo católico do Bispo de Roma – o Papa –, sua organização é mais descentralizada. Por outro lado, embora tenha lá suas semelhanças com os movimentos protestantes do cristianismo, também não é uma igreja protestante. É praticamente católica em seus ritos, adora a Virgem Maria. Tem, com a Igreja de Roma, uma relação íntima como aquela mantida com os Católicos Ortodoxos. Não raro, sacerdotes anglicanos deixam sua igreja para serem nomeados sacerdotes católicos. São mais parecidos que diferentes.
Agora, nesta última semana, líderes anglicanos de todo o mundo pediram às Igrejas dos EUA e do Canadá que não enviem representantes oficiais às reuniões da Comunhão Anglicana, que agrupa os principais sacerdotes. Na Grã-Bretanha, os fiéis estão divididos. Uns defendem que o exemplo norte-americano e canadense deve ser seguido; outros acham que trai a Bíblia. Mas a maior oposição vem dos anglicanos da África, imensamente mais conservadores. Temem que uma aceitação do homossexualismo pode levar fiéis a bandear para igrejas protestantes ou, até mesmo, para o Islã. E mesmo o apoio do arcebispo sul-africano Desmond Tutu, Nobel da Paz, não adiantou muito.
O mesmo tipo de crise atingiu a Igreja Anglicana há algumas décadas, quando passou a ordenar mulheres. Hoje já não causa tanto choque. E o pedido de que não venham representantes oficiais para a Comunhão não é visto como censura – representantes virão, ao longo deste semestre, para que apresentem suas visões. O processo, no entanto, será traumático e doloroso.
O grande problema é que as transformações sociais do século 20 foram intensas, profundas e muito rápidas. Nos anos 40 e 50, Karol Wojtilla não era visto como um reacionário. Dentro de um país particularmente conservador como sua Polônia natal, ele foi um dos primeiros padres a falar abertamente sobre sexo com os jovens. De maneira alguma para incentivar sexo antes do sacro matrimônio, mas para reconhecer tentações e discuti-las.
Em finais dos anos 70, quando foi alçado a papa, ele trazia outros dois trunfos. Um, o de ser um bispo que vinha de trás da Cortina de Ferro, que de fato conhecia o mundo comunista em suas entranhas. João Paulo II é um dos grandes responsáveis pela queda do Comunismo em seu país e, portanto, pela crise que seguiu, culminando com o desmantelamento da União Soviética.
E foi também o papa que terminou uma longa tradição anti-semita na Igreja Católica Romana. Era importante, no contexto da Guerra Fria, porque Israel era importante no Oriente Médio. E era importante porque a Igreja teve um papel deprimente durante a Segunda Guerra: ela se calou.
Mas acontece que estas são questões que não existem mais – e Wojtilla permaneceu papa uns 15 anos além. A Revolução Sexual se firmou, a sociedade é outra, há novas expectativas. Conseqüências da Revolução Sexual são que mulheres não ocupam mais, no mundo, posições subalternas; o casamento entre homossexuais está a um passo de ser reconhecido. Talvez demore alguns anos, ainda, mas nos grandes centros urbanos já tem legitimidade social. E sexo antes do casamento, na verdade, é uma questão irrelevante. Não existe mais – soa como arcaísmo.
Para que a Igreja Católica Romana volte ao mundo real, terá de lidar com essas questões. Não será fácil, pois os movimentos conservadores ainda são fortes. O problema é que, no momento em que ela não representa mais o bojo das pessoas, perde a relevância. Deixa de fazer parte da vida comunitária e passa a ser apenas uma tradição, uma coisa do passado que, lentamente, vai sendo esquecida. Não é difícil perceber esses efeitos em países como o próprio Brasil.
Quando estourou agora quinta-feira, numa reunião em Brasília, a notícia de que João Paulo II tinha sido novamente internado, desta vez para uma traqueostomia, um representante da CNBB comentou: “Já vai tarde”. Parece de uma crueldade, de um anticatolicismo absoluto. Mas está na hora de um novo papa. Não será fácil: precisará mudar muita coisa e rápido, coisas que já deviam estar sendo mudadas, lentamente, há duas décadas. Vai ser difícil e talvez não seja questão de sobrevivência. Mas de manter-se relevante.
(*) por Pedro Dória. AQUI
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