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WALDEMAR HENRIQUE: A tradução musical das grandes águas (*) É atribuída a Jaime Ovale, poeta e músico, frasista invejado do qual todo cronista de meados do século passado – ele morreu em 1955 - tinha uma história para contar, a invenção do Exército do Pará, formado pelos provincianos de todos os estados que vinham triunfar na então capital federal. Entre os combatentes puros-sangues dessa tropa, isto é, nascidos paraenses, como o próprio Ovale, dificilmente outro terá atingido a culminância artística consagrada a Waldemar Henrique, compositor e pianista que faria 100 anos nesta terça-feira, 15 de fevereiro, criador amazônico no conteúdo e na dimensão. Sua obra é a mais completa e a mais popular tradução musical das lendas indígenas, dos mistérios da floresta e das grandes águas. E nas escalas da sua hipotética viagem de ita, Waldemar Henrique transpôs talento para musicar poemas nordestinos, de Ascenso Ferreira e Jorge de Lima, entre outros, e cenas dos rituais negros baianos, como as do “Abaluaiê” , que anos mais tarde pareceria haver sido feito para tão bem integrar-se à voz poderosa de Clementina de Jesus. Neto de portugueses, Waldemar Henrique da Costa Pereira passou parte da infância no Porto. De volta, viajou uma pré-adolescência de rios e ilhas, Amazonas arriba, Tocantins inteiro e Marajó, onde a família tinha casa. “Nessas andanças, impregnei-me de folclore e cantigas”, disse. Começou a compor aí: teria 14 anos quando fez o rascunho da peça que algumas dezenas de anos depois o pianista Arnaldo Rebello poria em disco com o título de “Valsinha de Marajó”. Compunha com o que o escritor Antônio Tavernard, talvez o seu mais constante letrista, chamou de “inaudita facilidade”: “Tenho mesmo a impressão de que lhe basta correr os olhos pelo teclado para que o motivo procurado cresça e se desenvolva, espontâneo, justo, tradução em sons do seu pensamento”. Veio para o Rio em novembro de 1933. Crestado por longas jornadas de estudo, de prática e criação, chocou-o de início, no ambiente artístico metropolitano que tanto idealizara, o fato de que muitos dos compositores populares mais famosos não sabiam escrever, sequer ler, música. Socorreu alguns deles nessa falta de conhecimento musical, como conta o biógrafo Claver Filho (“Waldemar Henrique, o canto da Amazônia”, Funarte, 1978). Já trazia no matulão de partituras, ainda desconhecidas nacionalmente, algumas das canções que logo o inscreveriam no primeiro escalão, títulos como “Foi boto, sinhá!”, “Matintaperera” e “Minha terra”. No ano seguinte, destacou-se na produção de amplitude crescente – batuques, carimbós, cocos, lundus, acalantos, uma gama de gêneros exercitada com escoramento na inspiração folclórica – o “Tamba-tajá”, provavelmente sua composição mais difundida, apresentada às gerações mais recentes pela cantora Fafá de Belém. Faz parte do segmento da obra de Waldemar catalogado pelos especialistas como o das lendas amazônicas (há o das cenas regionais, o das danças dramáticas e outros): tamba-tajá, no fabulário indígena, é a planta que fortalece os laços do amor. Paschoal Carlos Magno definiu a canção como uma das mais ternas do mundo. Citado tanto em dicionários do que se chama grande música, nesses casos com preconceituosa timidez, como em antologias da canção popular, aqui fartamente reproduzido, Waldemar Henrique se dizia, em tom de brincadeira, “do concerto e dos cassinos”, referência ao muito que se apresentou nas casas de jogo, palco dos principais cartazes musicais nos anos 30 e 40. Mas atuou sobretudo no rádio, o grande veículo de sua época, no teatro, e em excursões, por todo o país e pelo exterior, Uruguai, Argentina, Paraguai, Portugal, Espanha e França. Ficou amigo de Villa-Lobos (mas achava que o maestro criara musicalmente uma Amazônia utópica, especial) e de Barroso Neto, de quem foi, aliás, o último aluno. E também, na outra ponta do arco musical, de Francisco Alves e Carmen Miranda. Curiosamente, Carmen não gravou música sua – e de Chico há apenas uma das gravações de “Minha terra”, feita em 1946. O intérprete mais entranhado na obra de Waldemar Henrique terá sido o duo que ele, ao piano, formou com a voz de sua irmã, por parte de pai, Mara Henrique. Ela renunciou definitivamente à vida artística em 1951 (morreu em 1975, no Rio), depois de haver consolidado, em milhares de recitais por toda parte, grotões brasileiros e capitais européias, a propagação da música misteriosa do irmão. Foi a maior intérprete dele, afirma Claver Filho, “inigualável”, segundo Mariza Lira. Há escassos registros da dupla em disco, entre eles de “Abaluaiê” e do maracatu “Hei de seguir teus passos”. O primeiro a gravar Waldemar Henrique, a canção “Cabocla malvada”, em 1934, foi Gastão Formenti. Importante divulgador das músicas do compositor, coube a ele também lançar em disco duas das mais representativas, a toada “Foi boto, sinhá!” e o batuque “Boi-bumbá”. Cantor e pintor de grande prestígio, Gastão Formenti acabou, na década de 40, por optar pela pintura. Morreu em 1974. Waldemar Henrique está ao piano em parte substancial de sua discografia, acompanhando por exemplo o cantor Jorge Fernandes ou as cantoras Maria D’Aparecida e Maria Helena Coelho Cardoso. Provavelmente o intérprete que mais gravou o autor, e o primeiro, no Brasil, a fazê-lo em LP, em 1956, Jorge Fernandes, morto em 1989, foi o criador, em disco, entre várias, da canção preferida de Waldemar, “Essa negra Fulô”, realizada sobre o poema de Jorge de Lima, com aproveitamento da totalidade dos versos. As gravações com Maria D’Aparecida foram feitas em Paris, em 1955. O repertório de Waldemar Henrique abriu à intérprete, até então mais conhecida como “rainha das mulatas”, troféu de predicados plásticos conquistado em concurso no Rio em 1948, as portas de uma bem-sucedida carreira de cantora lírica na Europa. Com Maria Helena, o compositor gravou pela primeira vez, já em 1976, a canção marajoara “Morena”, de 1935. Essa peça belíssima, de instantâneo poder de sedução, ganharia em seguida, ainda em 1976, uma versão primorosa do notável baixo pernambucano José Tobias, apoiada em arranjo refinado de Radamés Gnattali. É uma das oito faixas, divididas entre Tobias e a cantora Jane Vaquer, todas orquestradas por Radamés, dedicadas a Waldemar Henrique na coletânea “Música Popular do Norte”, arremate do mapeamento musical do Brasil que uma gravadora de intenções culturais, a extinta Discos Marcus Pereira, empreendia desde 1973. As sete canções editadas da série das lendas amazônicas – “Cobra grande”, “Curupira”, “Foi boto, sinhá!”, “Manha-nungara”, “Matintaperera”, “Uirapuru” e “Tamba-tajá” – foram reunidas em 1969 na voz eloqüente da soprano Maria Lúcia Godoy, com arranjos adequados de Guerra Peixe. O compositor tinha grande carinho por essas interpretações. De resto, reservava sempre algum louvor aos que transmitiram a sua arte, uma lista que se diversifica do barítono Ataíde Beck aos carnavalescos Vocalistas Tropicais e inclui estrelas como Marlene e Inezita Barroso. De bem com os intérpretes, Waldemar Henrique amargurava-se com os direitos autorais. Considerava-se “espoliado, e não editado”. De gravações, só recebia regularmente o que vinha do exterior (em plena Guerra Fria, não se sabia onde era mais gravado, se nos Estados Unidos ou na União Soviética). De tanto contrariar-se com esses maus-tratos, resolveu parar de editar. Já voltara ao Pará (fez a marcha-regresso em 1966, depois de mais de 30 anos de cidadania carioca), onde morreria em março de 1995, confortado pelo reconhecimento dos conterrâneos: diretor do Teatro da Paz, membro do Conselho Estadual de Cultura e da Academia de Letras do estado. Não deixara de compor. É provável que haja um acervo inédito a vir à tona um dia. Novas lendas da mata suntuária e das águas portentosas, tudo isso que faz a música de Waldemar Henrique ser confundida às vezes com o mais puro folclore. E essa é certamente a maior homenagem que se presta a ele. (*) por Moacyr Andrade. AQUI
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